terça-feira, setembro 08, 2009

A FELICIDADE

Deus estava de férias quando Felicidade nasceu. Acompanhado por um séquito de anjos, querubins, serafins, santos e, é claro, o Filho, fechou o Paraíso e colou na porta um apressado "Volto já". Mas não pretendia voltar tão cedo... No céu ficaram as Santas, as Senhoras, e Lyly (que aproveitara as férias de Deus para visitar as amigas). A entrada de Lyly se dera durante um descuido de São Pedro que, eufórico com a promessa de vários dias de vadiagem, esquecera de passar as famosas sete chaves na porta. Lyly não se fez de rogada e entrou conduzida pelas mãos de Joana, a do Arco. Escondeu-se num quartinho onde Deus guardava as mundanices da Terra e não fazia a menor questão de ver. E lá, entre os dejectos da humanidade, o prazer, a gula, os líquidos impuros, o riso, as gargalhadas, a esperança, a carne, as mulheres, as serpentes, as maçãs e os seus respectivos pecados, Lyly ficou escondida por vários dias celestiais. Não sei se pela presença infernal de Lyly ou se pela fermentação dos tais líquidos impuros, os dejectos mundanos iniciaram um quântico processo de concepção que culminou na gravidez de Lyly. Concepção sem Pai, sem Espírito Santo, em si, como a gravidez das mulheres... A solidão, feminina por natureza, não durou muito e logo vieram as Santíssimas. Juntas, enquanto Deus se divertia com Seu séquito de falos, tricotaram casaquinhos, bordaram lençóis, mantas, cueiros e fraldas, tecendo em nós delicados os fios do destino da pequena Felicidade. (A esta altura devo dizer que por processo transcendental inquestionável ou pelo excesso de maçãs que Lyly ingeriu durante a gestação, todas já sabiam que a barriga fermentava uma menina.) Não sei se por generosidade Altíssima ou se pelo desejo de se projectarem em algo mais além da santidade, depois de discutirem por séculos, milénios e horas, as Santas, Senhoras e Lyly decidiram que a menina se chamaria Felicidade. Guadalupe foi a primeira a sugerir o nome quando se recordou que o vira nos olhos de Diego, o indiozinho mexicano, reflectindo todas as estrelas do céu. A lembrança da Virgem suscitou as recordações das Feminíssimas presenças. Aparecida o identificou nos corações dos pescadores que a retiraram das águas do rio; Maria , quando lembrou de seus seios a jorrarem leite nos lábios do Filho. Fátima também nele pensara quando fechou o céu em negror para logo depois abri-lo em luz. Joana, a do Arco, nele pensara quando corria livre entre os guerreiros e até quando sustentou seus ideais na fogueira. Santa Rita de Cássia custou um pouquinho para dele se recordar, mas logo o localizou num cantinho da cozinha, bem debaixo da janela, onde podia se esconder da violência do marido. Lyly dele se recordava tatuado no corpo de Adão, no momento em que rolou sobre ele e recebeu seus líquidos. Eva o reconheceu no brilho redondo da maçã roubada do pomar de Deus. Recordadas por retalhos de altíssima humanidade, nomearam Felicidade bem antes dela ter nascido. Não sei se por nomeação prematura ou por motivo que está mais além da compreensão, Felicidade não nasceu óbvia. Nasceu sem as dores do parto e sem as contracções do ventre. Em vez de braços, abriu enormes asas; em vez de razão, exibiu espirais; em vez de olhos, arregalou uma estranha mirada atemporal. Sem tempo, braços e razão, tornou-se a filha preferida de todas as mulheres celestiais. Mimada, acarinhada por séquito Santíssimo, Felicidade cresceu fora das vistas de Deus e da bravura eloquente dos santos. Um dia, quando Deus resolveu limpar o quarto em que Felicidade nasceu, encontrou-a brincando com os dejectos dos mortais. Lembrou-se de Lyly e daquela estranha mania que ela tinha de querer ser feliz. "Não, esta criança não pode ser filha Dela! Lyly está presa nas profundezas do deserto, guardada por uma horda de demónios. Eu mesmo a pus lá!", Disse Ele sem muita certeza. Felicidade, assustada pela imperial presença, correu para se esconder debaixo do manto de Nossa Senhora, e ali, entre véus diáfanos de calor altíssimo, desabrochou demasiado humana. Por falta de deserto que a trancafiasse e de demónios que a vigiassem, Deus a arremessou à Terra, num dia em que os corações dos mortais assombraram em eclipse. "Milagre!", a humanidade gritou em uníssono quando Felicidade iluminou seus corações. Desde então, todos buscam a Felicidade, e poucos são, os que a encontram, pois não sabem que ela habita, no coração de cada um, e nesse local ninguém, ou muito poucos, a vão procurar. Mas ela está lá, sem dejectos, sem imundície, está pura, límpida, cristalina, risonha sempre.
Lylybety

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